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Quando se dissipa o património com loucuras, procura-se restaurá-lo com culpas.
Publius Cornelius Tacitus, historiador e advogado romano
Há alturas em que se torna difícil ser positivo sobre a preservação da herança medieval portuguesa. Há alturas em que, ao zelar pelo património português, somos forçados a expor as pústulas do governo – local ou nacional – e da má governação e falta de zelo – para não dizer ignorância propositada e destrutiva – a que o nosso património está sujeito. É este o caso com o Castelo de Montalegre.
O Castelo de Montalegre, localizado no distrito nortenho de Vila Real, é uma fortaleza granítica que remonta, segundo se crê, a finais do século XIII. É “muito possível” [1] que tenha sido mandado edificar por D. Afonso III em 1273, mas só viria a estar terminado e 1331 [2]. Escapou em relativa boa condição às vicissitudes do tempo – sofreu campanhas de melhoramentos e alterações no reinado de D. João II, e poucos danos sofreu com o Terramoto de 1755 – e em 1910 foi classificado como Monumento Nacional.

É um castelo com núcleo de planta circular, com quatro torres, que se ergue num outeiro sobre a vila de Montalegre propriamente dita. A torre de menagem, a norte, é um belíssimo exemplar de torre gótica, com 27 metros de altura distribuídos por 4 pisos. Como um todo, o Castelo de Montalegre é um soberbo exemplar do castelo nortenho dos séculos XIII e XIV, e uma jóia patrimonial da região e do país. Se esta descrição foi breve, é porque o que me motiva a escrever estas linhas – e afastar-me do tom relativamente neutro que tenho tentado manter em publicações anteriores – não é o castelo em si, mas o que lhe estão a fazer.

Data de 2017 o concurso público que a Câmara de Montalegre promoveu para uma intervenção no recinto do castelo. O projecto previa melhoria de acessos ao pano de muralha e uma reconstituição, em material contemporâneo, do troço de muralha em falta entre a torre de menagem e a Torre Pequena. “É uma obra de execução muito complicada, com um investimento caríssimo” [3], afirmou em Agosto deste ano o autarca, Orlando Alves. As intervenções seriam “comparticipadas por fundos comunitários, com a autarquia a assumir 15% dos 1,5 milhões de euros previstos para a realização das obras” [4].
Ora, tudo isto é muito correcto – e louvo qualquer município, português e não só, que tente cuidar dos monumentos, que não são só seus mas de todos nós. Mas há uma grande, gigantesca diferença entre o restauro e a consolidação e o atentado que se está a fazer em Montalegre:


Como se pode ver por estas imagens, foi despejado sobre o pano de muralha existente um lanço de suporte de betão. Betão. Simples, despojado, nu. Num monumento granítico a um par de séculos de se tornar milenar.
Segundo as directivas de restauro de monumentos portugueses (com as quais, em geral, não concordo; mas essas são outras águas), uma intervenção em monumentos deve obedecer a dois critérios fundamentais: o uso de materiais diferenciados dos originais, mas respeitantes do monumento como um todo; e a instalação de estruturas de carácter reversivo, de fácil remoção posterior e que não comprometam a integridade do monumento. Como é óbvio para qualquer pessoas, betão colocado sem mais nem porquê sobre o granito original da estrutura não obedece nem a um, nem a outro. Curiosamente, segundo testemunho de um montalegrense gestor da página , estes critérios foram eles próprios citados pelo autarca durante uma sessão de esclarecimentos sobre as obras.
Juntei-me aos meus colegas e amigos da página “Repensando a Idade Média” para tentarmos travar este processo, e foi das nossas mãos que partiu muita da informação para a comunicação social e entidades competentes. A disseminação destas imagens, bem como de outros dados que têm surgido, causaram uma onda de indignação geral que, parece-me, ainda não atingiu a sua crista. Quer o autarca convencer-nos de que estamos perante jogadas partidárias [5] e que “este alarido não faz sentido, o castelo obedece a um projeto concebido por uma equipa técnica qualificada que cumpre com as diretivas internacionais e as convenções, nomeadamente a Convenção de Veneza” [6]. Claramente, ou Orlando Alves não está a par da dita convenção, ou precisa de ser relembrado das suas próprias palavras.
Não é que os problemas da obra se fiquem pelo simples betão – e mesmo nessa questão fui, até agora, bastante sintético [7]. O projecto foi passado pela calada, indisponível ao público como um todo. Há uma suposta discrepância entre os valores do concurso público e os valores ajustados da adjudicação. Há também dúvidas sobre uma possível ligação entre a empresa encarregada das obras e o presidente da câmara [8]. E, por último, não se entende como é que o projecto de obra passou pelo crivo da DRCN e do IGESPAR [9]. Todas estas questões deverão ser investigadas, no contexto maior da franca estupidez que foi e é colocar betão numa muralha secular.
O caso continua em evolução, e esperemos que seja levado a bom porto – ou seja, à responsabilização criminal de quem arquitectou tamanha parvoíce, e à remoção de todo o conteúdo danoso do monumento. Mas isto não é apenas um caso local ou nacional. Como o próprio Orlando Alves tão orgulhosamente apregoa, o dinheiro utilizado para esta empreitada veio de fundos comunitários – ou seja, dos bolsos dos nossos irmãos europeus. A eles, portanto, cabe também a indignação, pelo desperdício e destruição aqui causados.
O Castelo de Montalegre, afinal de contas, não é só de Montalegre. Se os montalegrenses estão na linha de frente da batalha, atrás estão todos os seus concidadãos portugueses e, até, uma retaguarda europeia. O património é de todos. E todos devemos zelar por ele, e denunciar e impedir estes actos de destruição.
[1] Martins, M. (2016). Guerreiros de pedra: castelos, muralhas e guerra de cerco em Portugal na Idade Média. Lisboa: Esfera dos Livros, p. 76.
[2] Idem, ibidem.
[3] Publituris (2018, 2 de Agosto). Castelo de Montalegre em obras até Junho de 2019. Publituris. Disponível em https://www.publituris.pt/2018/08/02/castelo-de-montalegre-em-obras-ate-junho-de-2019/
[4] Idem, ibidem.
[5] Agência Lusa (2018, 12 de Dezembro). Obras no castelo de Montalegre geram criticas mas autoridades dizem cumprir normas. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/lusa/interior/obras-no-castelo-de-montalegre-geram-criticas-mas-autoridades-dizem-cumprir-normas-10311010.html
[6] Idem, ibidem.
[7] Porque sobre este assunto já alguém muito mais informado do que eu se pronunciou. Refiro-me ao relatório técnico elaborado sobre esta intervenção pelo Doutor Arquitecto Joaquim Miranda, especialista em Conservação e Reabilitação de Monumentos e Sítios, ao qual nos foi dado acesso.
[8] Estou aqui a reportar-me a informações não comprovadas que nos foram passadas em confiança e que carecem por ora de qualquer tipo de atestação. Refiro-me somente à existência das dúvidas, sem tecer acusações ou considerações sobre o seu fundamento.
[9] Agência Lusa (2018, 12 de Dezembro). Obras no castelo de Montalegre geram criticas mas autoridades dizem cumprir normas. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/lusa/interior/obras-no-castelo-de-montalegre-geram-criticas-mas-autoridades-dizem-cumprir-normas-10311010.html
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
Agência Lusa (2018, 12 de Dezembro). Obras no castelo de Montalegre geram criticas mas autoridades dizem cumprir normas. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/lusa/interior/obras-no-castelo-de-montalegre-geram-criticas-mas-autoridades-dizem-cumprir-normas-10311010.html
Martins, M. (2016). Guerreiros de pedra: castelos, muralhas e guerra de cerco em Portugal na Idade Média. Lisboa: Esfera dos Livros
Miranda, J. (2018) Relatório Técnico – Intervenção Sobre Património Classificado – Castelo de Montalegre.
Publituris (2018, 2 de Agosto). Castelo de Montalegre em obras até Junho de 2019. Publituris. Disponível em https://www.publituris.pt/2018/08/02/castelo-de-montalegre-em-obras-ate-junho-de-2019/
One thought on “Há algo podre nas terras de Montalegre”