Retratos Perfeitos, Objectos Imperfeitos: O Aspecto da Armadura em Recriação

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No que toca ao armamento em recriação, toda a gente sabe que as armaduras nos devem servir, e servir bem. Mas será que esta preocupação com o ajuste das peças reflecte a realidade histórica? As peças de armadura foram sempre feitas segundo as medidas exactas de um utilizador específico, como se de uma segunda pele se tratasse, ou será a nossa obsessão contemporânea com medidas perfeitas uma tentativa de se ser mais papista do que o papa? Até que ponto, se de todo, é que uma armadura que nos sirva menos do que bem é não só correcta, mas também desejável para os nossos retratos da época?

Armadura Medieval, E como a Arranjar

Quem quisesse ou precisasse de ter armadura nos finais da Idade Média tinha várias formas de o fazer. Um homem de meios teria tido um arnês feita à medida, de raiz, adquado ao seu corpo e gostos individuais. Segundo Nicholas Dupras, encomendar arneses de alta qualidade exigia “consultation and measurements in much the same way as bespoke tailors work” (e como trabalhavam na altura, aliás) [1]. O potencial cliente visitava a oficina do armeiro (a tenda, em Português medieval) para ser medido e para explicar os seus desejos e intenções em relação à sua encomenda. Se um patrono fosse suficientemente importante, eram os próprios armeiros que iam até ele: assim foi com Francesco Missaglia, membro da famosa família milanesa de armeiros e mercadores , que em 1466 ficou durante alguns dias na corte do rei Luís XI de França para tirar as medidas do monarca. Reis e príncipes tinham as suas equipas próprias de armeiros escolhidos a dedo, por vezes famílias inteiras – uma relação de trabalho que muitas vezes se espraiava ao longo das gerações [2].

Arneses feitos à medida eram, evidentemente, a categoria mais elevada em qualidade de armamento. No extremo oposto da escala estavam as peças de armadura encomendadas em grande lotes para prover arsenais e equipar largos contingentes de homens. São estas a peças de armamento que vemos compradas às dezenas e centenas a grandes centros de produção (no caso de Portugal, na sua maioria da Itália e da Flandres), para serem armazenadas em armazéns e castelos, prontos para qualquer eventualidade; ou adquiridas directamente a armeiros e comerciantes para equipar indivíduos ou séquitos. Estas peças eram fabricadas em tamanhos-padrão, que se esperavam servir a um vasto número de homens (e corpos), conforme necessário. E não era apenas a armadura produzida em massa e de menor qualidade que era encomendada a grosso e por atacado Em 1476, Álvaro Lopes de Chaves, secretário do rei Afonso V, registou o desejo do monarca de se adquirirem quinhentos arneses de Génova para dar aos seus cavaleiros em vez de das suas tenças, para travar guerra contra Castela [3]. Embora estes arneses se destinassem a equipar indivíduos endinheirados, dificilmente se tirariam medidas individuais para uma remessa tão grande.

Fossem de tamanho-padrão ou feitas à medida, as peças de armamento nem sempre eram compradas novas na loja. Os armamentos podiam ser herdados, por exemplo, legados de irmão para irmão, de senhor para vassalo, de pai para filho – como o conjunto completo que Vasco de Sousa deixou ao seu filho Gil em 1359, por exemplo [4] – uma realidade de transmissões que se verifica ao longo de toda a Idade Média. As armaduras podia ainda ser emprestadas para uma ocasião específica, como o foram para alguns dos cavaleiros que participaram no Paso Honroso em 1434 – incluindo o azarado Asbert de Claramunt, morto não porque o seu arnês emprestado não lhe servia, mas devido a um “chance blow through the eye-slit” [5].

Ajuste versus Forma

O armeiro Hanns Pernecker (1483), representado no Hausbuch der Mendelschen Zwolfbruderstiftung de Nuremberga.

Daqui resulta evidente, portanto, que a maior parte do armamento não era por hábito fabricado com um utilizador específico em mente. Mesmo nas situações em que o era, as armaduras acabavam mais tarde ou mais cedo por ir parar às mãos de alguém que dificilmente corresponderia às proporções física do primeiro utilizador.

No entanto, ninguém na altura parecia incomodado com o facto de a maioria das peças não servir por inteiro. A razão pela qual isto acontecia não estava apenas ligada à economia de mercado, ao facto de os soldados mais pobres se darem por contentes em receberem qualquer peça para os proteger, independentemente da sua forma. Pelo contrário, tinha muito a ver com a forma como os próprios armamentos eram produzidos. Hoje em dia, tendemos a assumir que preços baixos significam modelos imperfeitos – tamanhos padronizados que não servem bem a ninguém. Segundo a mentalidade moderna, a habilidade de um armeiro em moldar o metal é directamente proporcional ao preço das suas peças: quanto mais barata a peça, mais historicamente imprecisa a forma. Embora isto seja geralmente verdade para o século XXI, na Idade Média as coisas não funcionavam assim. Todos os armeirosmedievais sabiam, pelo menos até certo ponto, como moldar as peças para se adaptarem ao corpo humano – o processo de aprendizagem ia deixando os maus armeiros pelo caminho (uma peça mal feita acaba por matar alguém). Portanto, o preço final de uma peça histórica reflectia apenas parcialmente a habilidade envolvida na sua modelação anatómica – uma habilidade básica para qualquer armeiro na altura -, enquanto que outros factores, tais como os materiais e o esforço empregado na confecção e acabamento da referida peça, eram muito mais relevantes do que são actualmente. Enquanto que hoje em dia até um aprendiz de armeiro consegue polir as peças de forma rápida e consistente graças aos desenvolvimentos tecnológicos, por exemplo, nos séculos XIV e XV o acabamento da superfície das peças tinha um grande impacto no preço final, dado o polimento ser uma das fases mais demoradas e laboriosas na fabricação de armamentos No entanto, se uma peça for feita para se adaptar a proporções humanas correctas, mesmo alguns tamanhos-padrão podem cobrir variações corporais significativas através de pequenos ajustes feitos de fivelas, acolchoamento, e/ou através do desbaste (ou mesmo junção) de pedaços de material. E convém também ter em mente que, tal como o meu amigo Callum Tostevin-Hall expôs, temos algumas razões para acreditar que havia muito menos variações na forma do corpo, tamanho e altura no passado do que há hoje [6] – o que significava que os tamanhos-padrão medievais eram muito mais versáteis em comparação com os tamanhos-padrão actuais.

Armadura em Recriação

O problema com peças modernas, portanto, é que por vezes há pouca ou nenhuma diferença de valor entre algo ainda negro do fogo, acabadinho de sair da forja – um acabamento comum para peças de armadura de baixa qualidade durante a Idade Média – ou algo com um polimento espelhado. O valor dos armamentos modernos está quase inteiramente ligado ao grau de precisão da sua forma final e de mestria do artesão. O mesmo modelo de manopla, por exemplo, pode custar tanto seja de tamanho-padrão, produzido em massa, ou seja uma peça de alta qualidade feita à medida para caber apenas num conjunto específico de mãos. E porque os bons recriadores sabem que não há praticamente peças aceitáveis “prontas a vestir” no que à forma diz respeito, é perdido por cem, perdido por mil: já que se vai pagar a um armeiro respeitável de qualquer maneira (porque a maioria de nós não pode fazer os seus próprios armamentos), porque não ter as coisas feitas exactamente com as nossas medidas, dado que o custo é o mesmo? Porquê gastar centenas num elmo que não me cabe bem na cabeça, se o mesmo montante me garante um que me serve perfeitamente?

Em que é que ficamos então? Bem, ficamos na peculiar posição em que até peças concebidas para parecerem parte do conjunto de um pobre soldado, algo supostamente levado do arsenal da cidade ou emprestado pelo senhor local durante uma campanha, assentam a toda a gente na perfeição. Por outras palavras: mesmo ao tentarmos imitar a imperfeição, deixamos os objectos demasiado perfeitos.

Isto não se aplica apenas ao armamento, claro. O mesmo se aplica às calças, por exemplo, e à obsessão permanente pelas calças mais perfeitas e apertadas possíveis (uma perseguição em que qualquer ruga ou vinco é anátema, independentemente da classe que se esteja a retratar). Mas é particularmente perceptível em relação a peças de armamento porque a maioria de nós tem de comprá-las a alguém (ao contrário da roupa, por exemplo), e gastar quantidades consideráveis de dinheiro no processo.

Como resolver isto? Em boa verdade, para aqueles de nós que retratam qualquer outra coisa que não os escalões superiores da sociedade, existem apenas duas opções. A primeira é adquirir um bom conjunto em segunda mão que nos sirva razoavelmente bem – uma possibilidade rara, uma vez que quase não existe oferta de uma boa armadura de segunda mão para satisfazer uma procura tão vasta. A segunda opção é investir directamente em algo propositadamente imperfeito – uma questão que nos obriga a equilibrar os limites da autenticidade com outros factores pessoais e económicos. Queremos acuidade histórica total e completa, ou acedemos a atalhos que são, no fim de contas, imperceptíveis para outras pessoas, ainda que não para nós próprios?

No mínimo, saber que a maioria das armaduras medievais não foram feitas para nos servir como uma luva pode servir de algum consolo quando compramos equipamento bom, bem feito e que não serve bem ao sair da caixa. Decepcionante? Sem dúvida. Mas indubitavelmente correcto, também – e não é isso que pretendemos numa recriação bem feita?

[1] Dupras, N. (2012) Armourers and their workshops The tools and techniques of late medieval armour production [tese de doutoramento]. Leeds: University of Leeds, p. 80.

[2] Os exemplos mais bem conhecidos desta realidade são, sem dúvida, a família Helmschmied de Augsburg, armeiros de vários imperadores do Sacro-Império, bem como os arquiduques da Áustria e do Tirol; e a família Seusenhofer, encarregada da oficina imperial de Maximiliano I em Innsbruck. Os monarcas portugueses também tinham as suas próprias famílias de armeiros nomeados a dedo – por exemplo, Afonso Pires foi armeiro do rei Duarte eJoão Pires, seu pai, tinha sido armeiro do rei João I (pai e antecessor de Duarte). Veja-se Monteiro, J. G. (2001). Armeiros e Armazéns nos Finais da Idade Média. Viseu: Palimage Editores, pp. 18-19.

[3] Chaves, A. (1984). Livro de Apontamentos (1438-1489). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 54-55.

[4] Gil herdou ‘o cavallo do dito Vasco de Sousa, seu Padre, e huma espada, e huma lança, e huma loriga de cavallo, e duas ffalhas [solhas], e huum elmo com sseu camalho, e huuns braçaes[1], e huuns mosequinrs, e humas luvas d’aço, e huuns coixotes, e caneleiras velhas de coiro[2], e huum escudo, e çapatos de ferro hunns. Publicado originalmente no verbete para ‘Camalho’ em Santa Rosa de Viterbo, J. (1966). Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal Antigamente se Usaram e que Hoje Regularmente se Ignoram, 2. Lisboa/Porto: Livraria Civilização, p. 64.

[5] Fallows, N. (20112). Jousting in Medieval and Renaissance Iberia. Woodbridge: Boydell & Brewer, p. 88.

[6] Veja-se por exemplo Steckel, R. (2004). “New Light on the “Dark Ages”: The Remarkably Tall Stature of Northern European Men during the Medieval Era”, em Social Science History, 28 (2). Durham: Duke University Press, pp. 211-228.

BIBLIOGRAFIA

Chaves, A. (1984). Livro de Apontamentos (1438-1489). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda

Dupras, N. (2012) Armourers and their workshops The tools and techniques of late medieval armour production [tese de doutoramento]. Leeds: University of Leeds

Fallows, N. (20112). Jousting in Medieval and Renaissance Iberia. Woodbridge: Boydell & Brewer

Monteiro, J. G. (2001). Armeiros e Armazéns nos Finais da Idade Média. Viseu: Palimage Editores

Santa Rosa de Viterbo, J. (1966). Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal Antigamente se Usaram e que Hoje Regularmente se Ignoram, 2. Lisboa/Porto: Livraria Civilização

Steckel, R. (2004). “New Light on the “Dark Ages”: The Remarkably Tall Stature of Northern European Men during the Medieval Era”, in Social Science History, 28 (2). Durham: Duke University Press, pp. 211-228.

FONTES VISUAIS

Hausbuch der Mendelschen Zwolfbruderstiftung (finais do século XIV a inícios do século XV). Nuremberga: Stadtbibliothek Nürnberg

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