Peça do Mês XI

Dada a extensão deste artigo, achei por bem publicar as versões inglesa e portuguesa em separado. Para a versão portuguesa, cliquem aqui.

PEÇA DO MÊS XI – NAVETA

Colecção: Museu Nacional de Arte Antiga (n.º de inv.º 949 Our )

Datação: Segunda metade do século XV

Proveniência: Desconhecida – Legado Barros e Sá

Local de Manufactura: Portugal

Dimensões: ca. 18,6 cm de largura × 10,8 cm de altura

Peso: Desconhecido

Materiais: Prata

Descrição:  manaveta em forma de caravela, pequena mas altamente detalhado, feita em prata fundida, cinzelada, relevada e incisa. Apresenta um simples pé em prata lisa, gravado em torno da base.

Popa da naveta. O castelo da popa abre-se para permitir inserir conteúdos no interior. Foto © DGPC/ADF, Luis Pessoa

Para os estratos sociais mais elevados da Idade Média, uma refeição ia muito para além do sustento físico. As refeições cortesãs eram exibições públicas de abastança, prestígio e poder, em que o acto mundano de alimentar o corpo se esvanecia no pano de fundo da pompa e do espectáculo [1]. Uma das peças mais curiosas e extravagantes da mesa tardo-medieval era a nao ou naveta, receptáculos e/ou ornamentos de mesa em forma de navio. Estas navetas, feitas de prata, ouro e outros materiais preciosos, não eram meramente decorativas: dependendo do seu tamanho, podiam servir de recipientes para bebida, especiarias ou sal, mas também receptáculos para talheres e até mesmo pratos e cálices [2]. No testamento da Infanta D. Beatriz, em 1507, inclui-se uma “naveta de prata toda dourada com a sua colher presa por huma cadea, que tem hum alefante na popa, e na proa tem huma cabeça de serpe” [3]. No século XVI, as navetas de reis e imperadores poderiam mesmo apresentar adições como relógios mecânicos, ou pequenos autómatos [4]. Não admira, portanto, que fossem peças altamente apreciadas, trocadas como presentes e reutilizadas como marcos de grande devoção [5].

As navetas não eram apenas para as classes altas. Os menos poderosos tinham também as suas navetas mais simples e despojadas, geralmente equiparadas ao saleiro como símbolo de prestígio à mesa. As navetas eram também normalmente colocados perante convidados de honra, como forma de lhes marcar o lugar (desempenhando assim uma função muito semelhante à de um pano de honra).

Uma das representações mais conhecidas das sumptuosas navetas (nefs) francesas: o banquete Carlos V de França em 1378, com uma encenação da tomada de Jerusalém, Detalhe de Les Grandes Chroniques de France de Charles V, fol. 473v (ca. 1370-1379).
Vista de perfil da naveta do MNAA.

Este exemplo do MNAA não é apresentado como naveta de mesa mas sim como naveta religiosa (ou navicula em Latim), utilizada como receptáculo para incenso em vez de bebida ou especiarias. Estas navetas, desenvolvidas em paralelo com as suas congéneres [6], eram modelos tão populares e disseminados que podem ser encontrados um pouco por todo o mundo, levados por missionários ibéricos e adaptados às influências locais [7].

Não sabemos porque é que este espécime em particular é classificado como naveta de uso em missa, mas na sua simplicidade poderia muito bem ter servido qualquer um dos dois propósitos apresentados. Como é habitual em várias peças portuguesas, pouco ou nada se sabe sobre a sua proveniência. Seja uma coisa ou outra, esta pequena mas bela peça dá-nos não só um vislumbre da mentalidade europeia do final do século XV, fascinada por viagens distantes e embarcações marítimas [8], mas também da arte dos artesãos portugueses e a riqueza dos seus patronos, numa altura em que as rotas marítimas e as conquistas começavam a dar grandes dividendos para o reino. Devido ao seu nível de detalhe, é também um instrumento de estudo fantástico para a investigação de técnicas de construção naval, devido ao seu nível de detalhe.

[1] Correia de Sousa, L. e Miranda, M. (2011). “A «mesa do rei» como metáfora do poder”. In Buescu, A. and Felismino, D., A Mesa dos Reis de Portugal: Ofícios, consumos, cerimónias e representações (séculos XIII-XVIII). Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 382-383.

[2] Lightbown, R. (1978). Secular Goldsmith’s Work in Medieval France: A History. London: Society of Antiquaries of London, p. 31.

[3] Rebello de Andrade, M. (2011). “Artes de mesa e cerimoniais régios na corte do século XVI. Uma viagem através de obras de arte da ouriversaria nacional”. In Buescu, A. e Felismino, D., op. cit., p. 138.

[4] Collins, J., e Martin, M. (2017). “Early Modern Incense Boats: Commerce, Christianity, and Cultural Exchange”. Em Götler, C. e Mochizuki, M. (Eds.). The Nomadic Object: The Challenge of World for Early Modern Religious Art. Leiden: Brill, p. 520.

[5] Idem, p. 519.

[6] Oman, C. (1963). Medieval Silver Nefs. London: Her Majesty’s Stationery Office.

[7] Collins, J., e Martin, M. (2017), op. cit.

[8] Collins, J., e Martin, M. (2017), op. cit., pp. 523-526.

BIBLIOGRAFIA

Buescu, A. e Felismino, D. (2011). A Mesa dos Reis de Portugal: Ofícios, consumos, cerimónias e representações (séculos XIII-XVIII). Lisboa: Círculo de Leitores

Collins, J., e Martin, M. (2017). “Early Modern Incense Boats: Commerce, Christianity, and Cultural Exchange”. Em Götler, C. e Mochizuki, M. (Eds.). The Nomadic Object: The Challenge of World for Early Modern Religious Art. Leiden: Brill, pp. 513–546.

Lightbown, R. (1978). Secular Goldsmith’s Work in Medieval France: A History. London: Society of Antiquaries of London

Oman, C. (1963). Medieval Silver Nefs. London: Her Majesty’s Stationery Office.

Orey, L. (1984). A Ourivesaria Portuguesa no Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: MNAA

FONTES VISUAIS

Les Grandes Chroniques de France de Charles V (ca. 1370-1379). Paris: Bibliothèque nationale de France, BNF Français 2813

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