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(Este artigo foi originalmente preparado para a página Repensando a Idade Média, que vos convido a espreitar aqui.)
Hoje, que se comemora mais um aniversário da Batalha de Toro, gostaria de assinalar a efeméride com uma questão: O que faz na Catedral de Toledo o único arnês – ou, melhor dizendo, metade de um arnês –português do século XV que chegou até aos nossos dias? A pergunta não é descabida. Tal como não é descabido perguntarmo-nos quem foi Duarte de Almeida, o mítico Decepado, alferes de D. Afonso V. Tentar responder às duas questões, porém, é operar um exercício de equilibrismo entre o facto e a lenda.
O MITO
Uma alcunha estranha esta, com a sua cota-parte de casual crueldade. Quem nunca tiver ouvido falar da personagem, porém, poderá talvez ter ouvido uma vaga menção a um porta-bandeira que, numa qualquer batalha medieva contra Castela, teria defendido o seu estandarte com garbo, valentia, mas sem mãos – cortadas como tinham sido pelo inimigo.
1 de Março de 1476. Toro, província de Zamora, Castela. O dia amanhece tristonho, com o sabor de chuva no ar, enquanto de cada lado se alinham os exércitos: o castelhano, de D. Fernando II, o Católico, e português, de D. Afonso V. Em causa está, como quase sempre está em conflitos da realeza, uma questão de sucessão ao trono, neste caso o de Castela. Ao centro da linha portuguesa adeja o pavilhão real. O seu guardião, o alferes Duarte de Almeida, prepara–se para o início da refrega. Sabe bem que perder a bandeira real é um sinal de desonra, um sinal de derrota iminente.

Os arcabuzes castelhanos disparam uma salva inicial. No meio do fumo das armas, a linha portuguesa hesita, agita-se, descompõem-se. Apenas um segundo, que os castelhanos são lestos a aproveitar: o exército castelhano avança freneticamente, com brados de adrenalina nas gargantas e aço nu nas mãos. A linha portuguesa não aguenta, esboroa-se e recua como uma onda no quebra-mar. A luta em torno da bandeira real é medonha. Duarte de Almeida, envolto na refrega e subitamente abandonado pelos seus companheiros de armas, defende o estandarte com continuada bravura. Um golpe acerta–lhe na mão direita. Duarte vacila, mas segura–se à bandeira com a mão esquerda. Também ela não dura muito tempo incólume. Assoberbado pelos castelhanos, o alferes segura–se ao que pode, mas acaba perder o pavilhão d’El-Rei. Os castelhanos apoderaram-se então da bandeira e Duarte cai, envolto numa torrente inimiga. Teria Duarte morrido dos seus ferimentos? Teria sido capturado pelo inimigo? Quem conta um conto, acrescenta um ponto ou vários, e a partir daqui a história de Duarte de Almeida desdobra-se em múltiplos finais.
O HOMEM
Como em tudo, há um homem por detrás da lenda. E é curioso o quão pouco sabemos sobre ele – um suposto herói português – de tal maneira que não sabemos sequer de quem era filho, ou quando terá nascido ao certo. Em relação à ascendência, o ilustre historiador Anselmo Braamcamp Freire há muito que destruiu a hipótese, ainda assim amplamente difundida, de que tenha sido um tal de Pedro Lourenço de Almeida. Braamcamp Freire lança-se na conjectura de que tenha sido, em vez disso, um tal de João Fernandes de Almeida. [1]. Também para o nascimento será necessário fazer algumas suposições, com base nalguns dos dados soltos que Braamcamp Freire coleccionou: a primeira vez que Duarte aparece em registo histórico é em 1461, marcado como cavaleiro da casa real, e sabe-se que terá recebido doações por bons servidos prestados como alferes-menor em Marrocos, em 1464, durante a malfadada expedição de D. Afonso V a Tânger [2]. Seria ainda vivo em 1502, segundo Braamcamp Freira [3], mas em 1509 já teria falecido [4]. “Virtus in medium est”, costuma dizer-se. Se Duarte tiver sido investido como cavaleiro imediatamente antes de 1461, teria pelo menos 15 ou 16 anos a esta data, o que o faria ter nascido em 1445. Falecido após 1502, teria perto de sessenta anos à data da morte. Considerando alguma margem de manobra, sugiro o intervalo de 1420-1445 como data provável do nascimento do alferes [5].
E após estas datas, infelizmente, ficamos sem muito por dizer em relação a Duarte de Almeida. Não por escolha, mas por omissão histórica. Dos poucos detalhes que temos – o casamento e a possível esposa, por exemplo, ou uma possível casa sua que houve em tempos em Santarém –, já Braamcamp Freire deles falou de maneira exímia. Detalhes militares também não abundam: à excepção da menção breve da Crónica de Duarte de Meneses, e de sabermos que terá participado na conquista de Arzila [6], nada mais sabemos sobre a prestação de Duarte de Almeida antes de Toro. Nesta vida cheia de incógnitas, o que sabemos com alguma certeza é a façanha que se encontra na base de toda a lenda. Ficam-nos os traços gerais do conto, e é tudo.

O acto de heroicidade do “alferes pequeno” [7] aparece registado tanto por fontes portuguesas quanto castelhanas, pelo que não há motivo para colocar a sua veracidade em causa. No entanto, permanecem as dúvidas em relação aos ferimentos que teria sofrido. Teria ficado efectivamente sem mãos, como reza a lenda, e forçado a defender a bandeira com os dentes [8]? Fontes tanto portuguesas quanto castelhanas dividem-se neste ponto, embora não contestem a existência de lesões – o que seria de esperar numa batalha. Duarte de Almeida, moribundo, é feito prisioneiro e levado para Zamora para convalescer [9]. E aqui surge o último dos mitos: o que teria acontecido ao valente alferes após a sua recuperação? São múltiplos os cronistas que afirmam que teria acabado na pobreza [10], o que as investigações de Braamcamp Freire demonstraram ser pura falsidade [11]. Certo é que, depois de Toro, Duarte de Almeida é essencialmente consignado à posição de anotação histórica, perpetuador de um ramo da nobre família dos Almeidas que a pouco e pouco acabou por definhar.
CONTINUA NA PARTE II – O ARNÊS E OS SEUS MISTÉRIOS
[1] Convincente e interessante conjectura, diga-se de passagem; sem no entanto deixar de ser uma conjectura. Veja-se Braamcamp Freire, A. (1921). Brasões da Sala de Sintra, Volume I. Coimbra : Imprensa da Universidade, pp. 320-322.
[2] “[C]omeçou elRey de decer pera fundo per aquella lomba, (…) seu estendarte foy abatydo e fora tomado senom fora a bondade de Ruy de Sousa (…) e desy o alferez que era homem fidalgo e nobre e nom lhe falleceo coraçom e força pera sosteer aquelle trabalho o qual auya nome Duarte dAlmeyda”, em Zurara, G. (2012). Crónica de D. Duarte de Meneses. Edições Vercial.
[3] Braamcamp Freire, A. (1921). Brasões da Sala de Sintra, Volume I. Coimbra : Imprensa da Universidade, p. 333.
[4] Idem, p. 335.
[5] Não ajuda que Braamcamp Freire tenha identificado uma sucessão de outros Duartes de Almeida contemporâneos do nosso alferes – veja-se Brasões da Sala de Sintra, Volume I, pp. 336-337. Irei deixá-los de lado destas considerações, tal como ele fez.
[6] A exacta natureza do cargo de Duarte de Almeida em Arzila é também ela um mistério. Braamcamp Freire afirma, embora sem menção de fontes: “Dois dias depois da tomada de Arzila (…) não esquece ao africano a recompensa dos serviços de Duarte de Almeida, que decerto haviam de ter sido valiosos na emprêsa, apesar de nela a bandeira real ter sido levada pelo alferes mor conde de Valença” (1921, p. 324). A ser verdade, então o retrato do porta-estandarte que se pode observar na tapeçaria Assalto a Arzila seria o de Henrique de Meneses, 1º Conde de Valença, e não o de Duarte de Almeida, como até então se tem vindo a afirmar tanto em fontes nacionais como estrangeiras.
[7] Góis, D. (1724). Chronica do Principe D. Joam. Lisboa: Officina da Música, p. 300. Tornamos à mesma confusão sobre o cargo exacto de Duarte de Almeida.
[8] “Uma cutilada corta-lhe a mão direita; indiferente à dor, empunha com a esquerda o estandarte confiado à sua Honra e lealdade; decepam-lhe também a mão esquerda; Duarte de Almeida, desesperado, toma o estandarte nos dentes, e rasgado, despedaçado, os olhos em fogo, resiste ainda, resiste sempre” em Pereira, J. e Rodrigues, G. (1904). Portugal – Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico – Volume III. Lisboa: João Romano Torres, p. 23.
[9] Como apresentei logo de início, há quem afirme, sem motivo algum para o fazer, que o corajoso alferes tenha falecido após a batalha: “La versión más extendida afirma que falleció en combate poco después de que le cercenaran los brazos o las piernas (algo que cree Fernando Fulgosio)”, em Villatoro, M. (2016, 2 de Março). El mítico portugués que defendió su estandarte a dentelladas cuando los españoles le cercenaron de raíz los brazos. ABC Historia. Disponível em https://www.abc.es/historia/abci-mitico-portugues-defendio-estandarte-dentelladas-cuando-espanoles-cercenaron-raiz-brazos-201603020152_noticia.html .
[10] Opinião perfilhada por Duarte Nunes de Leão (século XVI) ou António de Macedo (século XVII), por exemplo, e que se perpetuam ainda hoje.
[11] Exemplo disso são as múltiplas tenças e benesses que lhe são outorgadas, a si e aos seus descendentes, como recompensa pela longa carreira de serviço. Podem não ter sido montantes suficientes para permitir uma vida de luxo, é certo, mas dificilmente o obrigariam a trocar as armas pelas ferramentas agrícolas, como algumas fontes afirmam. Veja-se Braamcamp Freire, A. (1921), pp. 330-333.
BIBLIOGRAFIA
Braamcamp Freire, A. (1921). Brasões da Sala de Sintra, Volume I. Coimbra : Imprensa da Universidade
Góis, D. (1724). Chronica do Principe D. Joam. Lisboa: Officina da Música
Pereira, J. e Rodrigues, G. (1904). Portugal – Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico – Volume III. Lisboa: João Romano Torres.
Pulgar, H. (1780). Crónica de los Señores Reyes Católicos Don Fernando y Doña Isabel de Castilla y de Aragón. Valencia: en la Imprenta de Benito Monfort (data da primeira edição: 1490).
Villatoro, M. (2016, 2 de Março). El mítico portugués que defendió su estandarte a dentelladas cuando los españoles le cercenaron de raíz los brazos. ABC Historia. Disponível em https://www.abc.es/historia/abci-mitico-portugues-defendio-estandarte-dentelladas-cuando-espanoles-cercenaron-raiz-brazos-201603020152_noticia.html .
Zurara, G. (2012). Crónica de D. Duarte de Meneses. Edições Vercial.
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